No nível mais profundo da nossa humanidade, buscamos a verdade porque ela nos dá sentido e integridade
Não é simples confiar. A confiança exige entrega, e essa entrega se torna mais árdua com o passar dos anos. A maturidade, com sua experiência, traz não apenas sabedoria, mas também uma suspeita silenciosa sobre a bondade humana. Aquilo que antes parecia espontâneo e sincero começa a ser visto com desconfiança. Vivemos em tempos em que as aparências moldam realidades: filtros, máscaras, competições desleais e egos inflados compõem o cenário cotidiano. Nesse teatro, confiar tornou-se um ato cada vez mais arriscado.
Somos seres orientados à verdade. No relato bíblico, Deus cria o que é bom, belo e verdadeiro, enquanto o diabo é descrito como o pai da mentira (Jo 8,44). No nível mais profundo da nossa humanidade, buscamos a verdade porque ela nos dá sentido e integridade. É curioso perceber como esconder um erro exige esforço. Um simples ato falho, como diria Freud, pode trair nossas intenções e revelar a verdade que tentávamos ocultar. Parece que o próprio corpo se revolta contra a mentira, buscando a autenticidade.
Contudo, a cultura contemporânea abraça o que Zygmunt Bauman chamou de amor líquido, onde as relações são instáveis e descartáveis, e a confiança, cada vez mais escassa. A busca por status e aparência substituiu o compromisso com a verdade. “À mulher de César não basta ser honesta; ela precisa parecer honesta.” Hoje, parece que nos contentamos apenas com a aparência. A verdade se tornou um fardo, e sacrificamos a autenticidade em nome da estética.
A dificuldade em confiar nos outros reflete uma incapacidade ainda mais profunda: a de sermos fiéis a nós mesmos. Como afirmou Polônio em Hamlet, “Acima de tudo, sê fiel a ti mesmo, e disso segue-se, como a noite ao dia, que não poderás ser falso com os outros”. Mas como ser fiel a si mesmo em um mundo que nos incentiva a desempenhar papéis e a adaptar verdades conforme os interesses? Perdemos a capacidade de escutar nossas próprias necessidades e de reconhecer quem realmente somos.
O desconhecimento de si é uma forma de se perder. E quando não sabemos quem somos, não conseguimos reconhecer o outro. Assim, nossos afetos tornam-se frágeis e passageiros. Essa é uma das marcas do nosso tempo: relacionamentos se dissolvem na superficialidade, e qualquer encontro ao longo do caminho se torna uma oportunidade de consumo: consumimos pessoas como consumimos produtos. E sem o vínculo profundo do afeto, a confiança se esvai.
Em sua obra sobre ética, Emmanuel Levinas sugere que é no “rosto” do outro que encontramos o chamado para a responsabilidade e para a alteridade. Reconhecer o rosto do outro é perceber nele um mistério, um ser que exige respeito e cuidado. Vivemos em um mundo onde a competição e a pressa obscurecem esse rosto. Competimos tanto que o outro se torna um adversário, e não alguém com quem partilhar a vida.
Confiar é, então, um ato que exige ver o outro em sua verdade, sem filtros, sem máscaras. É enxergar além da aparência e reconhecer o valor que há no simples fato de existir. Mas como confiar quando estamos todos perdidos em nós mesmos, com afetos desidratados? A confiança não é um dado automático; é fruto do encontro genuíno, onde cada um se apresenta como é, sem pretextos e sem contextos, sem ser uma vítima de si a ponto de se punir nos outros.
Confiar é um ato de fé. Não uma fé ingênua, mas uma fé racional, espiritual, consciente de abrir-se, de apostar no outro, de deixar vir a ser, permitindo que, até quem nos decepcionou, venha a nós com uma versão melhor de si mesmo. Confiar é, antes de tudo, um ato de cura: curar-se da desilusão do amor que pode ter faltado.
Confiar em tempos líquidos e competitivos é um desafio imenso; requer heroísmo. É desafiador, mas necessário. Só confia quem aposta na vida! A confiança não dá salvo-conduto pelo exílio das decepções. A vida é cheia delas. É bom que a gente se desiluda... A confiança é saber que, mesmo diante de decepções, o pessimismo nunca é a melhor saída. Vamos deixá-lo para tempos melhores. Afinal de contas, como lembra Madre Teresa de Calcutá, será tudo entre nós e Deus...
Itatiaia / Padre Samuel Fidelis